Como a figura feminina está inserido na questão da castração em Lacan?

Essa foi a pergunta de uma das minhas alunas do Curso de Psicanálise e como eu sempre digo: dúvidas podem nos levar ao nível de evolução elevado e construtivo pois a dúvida é a porta de entrada para o autoconhecimento.

Para Lacan, a questão da castração e do Falo na menina (o ser feminino) é um ponto importante e complexo, que se afasta da visão freudiana mais direta da “inveja do pênis”. Lacan ressignifica o Falo, tirando-o de sua dimensão puramente biológica e anatômica e elevando-o a um significante privilegiado, um símbolo da completude e do poder simbólico, que organiza o desejo e a lei.

Vamos entender como a menina se insere nessa dinâmica:

  1. O Falo como Significante: Para Lacan, o Falo não é o pênis em si, mas o significante do desejo do Outro. Ele representa aquilo que a mãe (o Outro primordial) supostamente deseja, aquilo que lhe daria completude. Tanto meninos quanto meninas se deparam com a ausência do Falo na mãe.
  2. A Entrada na Castração Simbólica:
    • Para o menino: A ameaça de castração (perda do pênis) é realçada pela percepção da ausência do pênis na mãe. Ele teme perder o que “tem” e o que o coloca em uma posição privilegiada em relação à mãe (que o deseja como Falo). A castração para ele é a renúncia ao desejo incestuoso pela mãe e a aceitação da lei paterna.
    • Para a menina: A menina também se depara com a castração simbólica, mas de uma forma diferente. Ela percebe que a mãe “não tem” o Falo. Isso a coloca diante de uma falta. A castração para ela não é a ameaça de perda de um órgão, mas a constatação da falta do Falo em si mesma e na mãe.
  3. “Ter o Falo” vs. “Ser o Falo”:
    • “Ter o Falo”: Essa é a posição que o menino busca e que o pai encarna simbolicamente. O menino, ao se identificar com o pai, aspira a “ter o Falo”, ou seja, a ocupar a posição de poder e autoridade simbólica.
    • “Ser o Falo”: A menina, ao contrário, não pode “ter” o Falo no sentido anatômico. Sua posição em relação ao Falo é a de “ser o Falo” para o Outro (especialmente para o pai). Ela busca ser o objeto que preenche a falta do Outro, ser aquilo que o Outro deseja. Isso pode se manifestar na busca por ser bela, desejável, a “mulher ideal” que satisfaz o desejo masculino. Então, vale a pena para e refletir sobre o nosso papel no mundo, sobre nossos desejos e frustrações.
  4. O Desejo da Menina e a Busca do Pai: Diante da constatação da falta do Falo na mãe, a menina se volta para o pai. Ela busca no pai o Falo que a mãe não tem e que ela mesma não “tem”. O pai representa aquele que “tem” o Falo e que pode, simbolicamente, “dá-lo” a ela (ou a um filho que ela possa ter). Essa virada para o pai é fundamental para a saída do complexo de Édipo feminino. (Veremos mais sobre isso adiante.)
  5. A Maternidade e o Falo: A maternidade, para Lacan, pode ser uma forma de a mulher tentar “ter o Falo” através do filho. O filho (especialmente o menino) pode ser investido como o Falo que ela não tem, uma forma de preencher essa falta simbólica. No entanto, Lacan adverte que essa identificação do filho com o Falo pode levar a uma relação simbiótica e a dificuldades na separação.
  6. A Posição Feminina e o “Não-Todo”: Lacan argumenta que a mulher não se inscreve “toda” na função fálica. Enquanto o homem se organiza predominantemente em torno do “ter o Falo” e da lógica fálica (da completude e da exceção), a mulher tem uma relação mais complexa com o Falo, o que Lacan chamou de “não-toda”. Isso significa que, além da dimensão fálica, a mulher tem acesso a um gozo Outro, um prazer suplementar que não é totalmente capturado pela lógica fálica e pelo que ela realmente significa. Essa é uma das razões pelas quais a sexualidade feminina é considerada mais enigmática e menos unificada do que a masculina.
  7. O complexo de Édipo, na versão feminina, é chamado de complexo de Electra.
  8. Esse termo foi proposto por Carl Jung como uma forma de descrever o processo pelo qual a menina desenvolve apego pelo pai e rivalidade com a mãe durante a fase fálica do desenvolvimento psicossexual, segundo a teoria psicanalítica.
  9. Freud, embora tenha reconhecido que o processo ocorria também em meninas, não usava o termo “complexo de Electra” — ele considerava tudo parte do “complexo de Édipo”, tanto para meninos quanto para meninas, com suas devidas diferenças. Ou seja:
  10. • Complexo de Édipo (Freud): termo geral, usado para ambos os sexos, mas com nuances diferentes.
  11. • Complexo de Electra (Jung): termo específico para o caso feminino, com desejo pela figura paterna e rivalidade com a mãe.

Frequentemente esse é um assunto mal interpretado na teoria lacaniana: a castração para Lacan não se refere à ausência física do pai ou da mãe, mas sim à ausência ou falha de suas funções simbólicas na estruturação do sujeito. a menina entra na castração lacaniana não pela ameaça de perda do pênis, mas pela constatação da ausência do Falo em si mesma e na mãe. Sua relação com o Falo se dá na tentativa de “ser o Falo” para o Outro, buscando preencher a falta do desejo do Outro, o que a leva a uma busca por reconhecimento e a uma relação complexa com a maternidade e a sexualidade.

Vamos detalhar isso:

  1. A Castração como Operação Simbólica: Para Lacan, a castração não é um evento traumático único ou a privação de um órgão (como na visão mais literal do complexo de castração freudiano). É, antes, uma operação simbólica fundamental que marca a entrada do sujeito na linguagem e na cultura. É a renúncia à ilusão de completude e fusão com o Outro (a mãe primordial) e a aceitação da lei e da falta.
  2. O Papel do Pai:
    • Não é o pai biológico: A figura do pai, para Lacan, é primeiramente a função paterna, o que ele chama de Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai representa a lei, a interdição do incesto e a separação da criança da mãe. É o que introduz a falta na relação mãe filho, permitindo que a criança se insira na ordem simbólica e deseje algo além da mãe.
    • A castração acontece pela introdução da lei: A castração, nesse sentido, ocorre quando a criança é confrontada com a lei simbólica que proíbe a fusão total com a mãe e a coloca em relação com o desejo do Outro. Essa lei é encarnada pela função paterna.
    • O que acontece sem a função paterna? E essa foi a grande dúvida de alguns alunos do Curso de Psicanálise: Se a função do Pai falha ou não se estabelece adequadamente, o que Lacan chama de foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito não é “castrado” no sentido simbólico. Isso não significa que ele “supera” a castração, mas sim que ele não se inscreve na ordem simbólica da mesma forma. A ausência dessa função pode levar a estruturas psicóticas, onde a realidade simbólica é construída de maneira diferente, sem a mediação da lei e da falta. Não há “superação”, mas uma inscrição diferente na estrutura psíquica.
  3. O Papel da Mãe:
    • A mãe é o Outro primordial para a criança. No início, a criança se identifica com o desejo da mãe, buscando ser o objeto que preenche a falta dela.
    • A função da mãe é crucial para a entrada na castração, pois é ela quem, ao desejar algo além do filho (o Falo, que pode ser o pai, a carreira, etc.), introduz a criança à ideia de que ela não é “tudo” para a mãe. É a mãe que, ao se remeter a um terceiro (o pai simbólico), abre espaço para a lei e para a castração.
  4. A Ausência de Figuras Parentais Físicas:
    • A ausência física do pai ou da mãe não impede necessariamente a castração simbólica. O que importa é se a função simbólica que eles representam (a função paterna da lei e da separação, e a função materna de introdução ao desejo do Outro) é transmitida e internalizada pela criança.
    • Uma criança pode ter um pai presente fisicamente, mas que não exerce a função paterna simbólica (por exemplo, um pai ausente em termos de autoridade ou que não representa a lei). Da mesma forma, uma mãe pode estar fisicamente presente, mas não permitir a separação da criança.
    • Por outro lado, uma criança pode ser criada por avós, tios, ou pais do mesmo sexo, e ainda assim desenvolver uma estrutura psíquica onde a função do Pai e a castração simbólica se estabelecem, através de outras figuras ou da própria cultura que veicula a lei.

Para Lacan, a castração não é uma questão de “ter” ou “não ter” um pai ou uma mãe fisicamente, mas de como a pessoa (o EU no mundo), se posiciona em relação à função simbólica do Pai (a lei que interdita e estrutura o desejo) e à função da mãe (que introduz a falta e o desejo). A ausência da figura masculina (ou de qualquer figura que encarne a função paterna) não “supera” a castração; pelo contrário, pode levar a uma falha na sua instauração, com consequências para a estrutura psíquica do sujeito.

A Falta, o Desejo e a Frustração em Lacan

Podemos afirmar que, para Jacques Lacan, a falta que está intrinsecamente ligada ao desejo é um motor fundamental que pode, de fato, conduzir à frustração e a crises existenciais.

Para compreender isso, é essencial mergulhar nos conceitos lacanianos:

  • A Falta : Lacan postula que o ser humano é, desde o início, um ser de falta. Não se trata de uma ausência pontual, mas de uma falta estrutural, constitutiva do sujeito. Essa falta primordial remonta à separação do bebê da mãe, à perda da suposta completude original. É essa falta que abre o espaço para o desejo.
  • O Desejo: O desejo, para Lacan, não é uma demanda por algo específico ou a satisfação de uma necessidade. É, antes de tudo, o desejo do Outro, ou seja, o desejo de ser reconhecido e amado pelo Outro. Ele surge dessa falta fundamental e é sempre insatisfeito, pois não há objeto que possa preenchê-lo completamente. O desejo desliza de um objeto para outro em uma busca incessante por essa completude que nunca é alcançada.
  • A Frustração: A busca incessante do desejo, que nunca encontra sua plena satisfação, inevitavelmente leva à frustração. Como o desejo se move de um objeto para outro e é, em sua essência, um desejo de algo que está sempre “além” (o objeto a), a experiência da impossibilidade de preenchimento completo é inerente. Essa frustração não é apenas a não obtenção de algo, mas a constatação da falta.
  • As Crises Existenciais: A persistência dessa frustração e a confrontação contínua com a falta estrutural podem, sim, desencadear crises existenciais. Quando o sujeito se depara repetidamente com a impossibilidade de satisfazer plenamente seu desejo, quando a busca por reconhecimento ou por um sentido completo se mostra vã, podem surgir questionamentos profundos sobre a existência, o sentido da vida, a identidade e o lugar no mundo. Essas crises são manifestações da angústia decorrente da falta e da incompletude do ser.

Em resumo, a falta é a condição que engendra o desejo, e o desejo, por ser insaciável e sempre em busca de um objeto que lhe é inatingível (o objeto a), culmina na frustração. Essa frustração constante, por sua vez, pode precipitar o sujeito em crises existenciais, que são momentos de desestabilização e questionamento profundo diante da qualidade da falta em sua própria constituição.

Para aprofundar-se nos conceitos de falta, desejo, falo e castração em Lacan, sugiro as seguintes bibliografias:


Lacan

  • NASIO, Juan-David. Cinco Lições sobre a Teoria de Jacques Lacan.
    • Outro excelente ponto de partida, com uma linguagem clara e acessível, que aborda os pilares do pensamento lacaniano.https://amzn.to/40seNIM
  • FINK, Bruce. Introdução Clínica à Psicanálise Lacaniana.
    • Mais voltado para a prática clínica, mas com conceituações muito úteis e exemplos que ajudam a entender como os conceitos operamhttps://amzn.to/44slOuu
  • JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, Vol. 1: As bases conceituais.
    • Este livro é um manual indispensável para entender a transição e a ressignificação dos conceitos freudianos por Lacan, incluindo a primazia do falo e a castração.

Dica de Leitura


Comece pelas introduções e, à medida que se sentir mais confortável, mergulhe nos seminários e escritos de Lacan. Eles são densos e exigem uma leitura atenta e repetida, mas o esforço vale a pena para desvendar a profundidade de seu pensamento.

Espero que essas indicações ajudem você a explorar ainda mais esse fascinante universo da psicanálise e da Mente Humana.

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    Psicoterapeuta.
    Psicanalista com especialização em saúde mental e Neurociência.
    Especialista em educação com especialização em Neuropsicopedagogia. Professora de Filosofia.
    Escritora e palestrante.

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